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Noah Mancini Mendes

Graduado no Bacharelado Interdisciplinar pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2020). Mestrando em Cinema e Artes do Vídeo (Linha 1) pela Universidade Estadual do Paraná (Bolsista CAPES), orientado pela professora Sandra Fischer. Artista multimídia, tem experiência na área artística, atuando principalmente nos seguintes temas: artes visuais, artes diaspóricas, curadoria, cinema, colagem visual, performance, moda e e expografia. Participa/participou de grupos de pesquisa na área de arte e educação, arte e vida e Tradução Intersemiótica. Também participa dos grupos de pesquisa EIKOS - Imagem e Experiência Estética; e o TELAS. Além disso, gere os projetos Casa Povera e Debauxe.

GRAVIDADE (2013):
NÃO HÁ PAZ NEM FORA DA TERRA

“MATT: O que você mais gosta aqui?

RYAN: O silêncio”

O filme Gravidade, com direção de Alfonso Cuarón, apesar de produzido há dez anos,  não parece impressionar pela data de seu lançamento. À época um dos sucessos de bilheteria nas salas 3D, mescla gêneros como ficção científica, drama e suspense. Com um reduzido elenco, composto majoritariamente de dois atores, George Clooney (tenente Matt Kowalski) e Sandra Bullock (Dra. Ryan Stone), busca captar a atenção dos espectadores narrando agruras enfrentadas pelas personagens.

 

Estamos na galáxia. Um negro fundo e asteroides, estrelas, satélites diminutos brilhando ao fundo. Vozes em off iniciam o filme com uma conversa, três tripulantes de uma missão espacial circundam uma nave, emitem mensagens de seus rádios, dialogando entre si e com a base emissora, que se encontra na Terra. Bandeiras dos EUA estampam os uniformes. May day. Há uma semana situam-se no espaço. Um deles, o mais descontraído, escuta uma música. Parecem consertar uma máquina: parafusos, chaves de fenda e mecânicos na órbita.

 

Contam histórias de suas vidas, humanas, lá embaixo, quando são surpreendidos por um chamado de evasão. Contagem regressiva. Um satélite próximo a eles foi destruído e seus destroços estão indo de encontro. Perigo. Não demora muito, e adivinha, os lixos da ex-máquina atingem os companheiros. Um dos astronautas já morre com sua cara atravessada por um detrito. Desencadeiam sufocos, problemas mil, e uma verdadeira saga se inicia pela sobrevivência no inóspito. Muitas situações periclitantes, uma provação após a outra: perrengue no espaço sideral. Coisas dão errado, a protagonista se desespera, começa a faltar oxigênio, anuncia-se um término trágico. Dra. Ryan gira sem parar, feito um pião em câmera lenta, sozinha no espaço.

 

Apesar da situação ser tensa ou grave em diversos momentos, há entre os diálogos dos personagens um senso de humor. A ironia cômica encontra espaço num cantinho da via láctea, principalmente ensejada pelo tenente Matt, que busca descontrair o revés que passam soltando piadas. A sobreposição de vozes domina nossa escuta enquanto algo totalmente diferente acontece em tela: as luminosas, o globo terrestre sempre lá embaixo, e o vazio sideral com mensagens de rádio.

 

Somos atirados, sem prévio aviso, para um qualquer lugar do espaço. Essa construção ficcional do “fora do mundo”, esse mundo qual conhecemos e permanecemos, o “como deve ser lá fora” passa a ser imaginado a partir da elaboração de ficções de quem aqui vive. Desde a alteração no estado gravitacional até à todos os procedimentos técnico-científicos necessários para habitar esse outro lugar, o contexto da “galáxia”, realidade para pouquíssimos terráqueos, estimula a experiência com toques de fantasia. A distância assustadoramente quilometral, a noção de medidas da dimensão humana, quando comparadas à realidade para fora do globo, tem até dificuldade em serem compreendidas, “como a velocidade é medida?”, “como fazer o caminho para chegar até lá?”.

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Nas ruínas humanas que pairam pelo cosmos, encontramos resquícios, rastros, objetos comprovadores de nosso tempo e de nossa insignificância, nas conjecturas pretensiosamente perpetuadoras da existência humanóide: santinhos, brinquedos (destaque para Marvin, O Marciano), fotografias em porta-retratos, mochilas, lapiseiras, raquetes de pingue pongue. Projetamos toda nossa trajetória para fora, para o outro, um outro além de nós. Tal preocupação metafísica só confirma a consternação que nos abate pelo aparente não tão simples fato de existirmos. Na cereja do bolo, há um poster de Viagem à Lua (1902), de Georges Mélies, pregado pelas paredes de uma nave, que possui outras referências implantadas no decorrer do filme.

 

Ao longo da história, Matt Kowalski, seu companheiro de operação, morre no espaço, enquanto Dra. Ryan luta para voltar à vida terrena mesmo que ali sozinha esteja. É admirável a serenidade com que ele, notoriamente mais experiente em missões como esta, abdica da viagem para salvá-la e tranquilo morre no espaço. A vista da imensidão, no inevitável momento fatal, é vivida em solitude plena.  Afinal, tal experiência é para poucos.

 

Determinada hora, encurralada diante da morte e conformada com a mesma, Ryan começa a uivar feito um cão para qualquer um que a escute do outro lado da transmissão. E aí novamente vemos o miserável apego à existência, à materialidade de nossos corpos e às memórias aqui impressas, ao percurso no curto período e espaço que chegamos a habitar. Ryan pede para alguém ficar de luto por ela, alguém rezar por ela, para não ser relegada ao esquecimento. Fala sozinha sobre a filha falecida. Delírios pré-morte, viu a vida passando pela greta. BUM! Plot twist: do nada o tenente Matt reaparece, é um delírio que a traz de volta ao que precisa fazer: sobreviver. Ele a incentiva e a instrui a acionar os comandos necessários para retornar ao planeta mãe.

 

Ao longo da obra, algumas belas imagens são construídas, a exemplo da cena onde ela chega na nave, tira o traje astronáutico e descansa em posição fetal com vários fios em volta, assemelhando-se a um feto em gestação.

 

A produção esbarra em uma viagem de terror psicológico, aventura solo e quase fracassada. Mas de praxe nas produções hollywoodianas, apesar de todas as intempéries vividas, chegamos no fatídico final feliz. Em uma hora e meia aqui na terra, não sei ao certo quanto tempo corresponde na galáxia, ansiamos por um término que nos devolva um pouco de descanso. Nos últimos minutos visualizamos a vitória de Ryan Stone. Em missão arriscadíssima e quase impossível, ela mergulha em um lago, quase morre afogada, mas consegue colocar o pé no chão. May day: temos uma sobrevivente.

WANDINHA: O NOVO DE NOVO

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A série Wandinha, lançada pela Netflix em novembro de 2022, vem chamando a atenção do público do streaming. Propõe uma revisitação do clássico “Família Addams”, dando especial ênfase na personagem Wednesdays (Jenna Ortega), filha de Mortícia (Catherine Zeta-Jones) e Gomez (Luís Guzman). Para quem não acompanhou as antigas produções, não há nada de primordial que não seja contextualizado na atual produção ou povoe o imaginário pop das últimas décadas. Criada em 1938 pelo cartunista Charles Addams, aparentemente inofensiva, portadora de certo carisma, a dinastia Addams funciona como a caricatura do gosto pelo macabro. É baseada nas seguintes figuras: Mortícia em lânguida sensualidade, o pomposo mafioso Gomez, o ingênuo irmão Feioso e uma mão viva sem corpo, como um funcionário da casa, sempre a postos para servir a família. Ah, e um mirabolante tio distante sempre envolvido em problemas.

 

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Estratégia das produções contemporâneas, tem sido frequente a ênfase em determinados personagens vilanescos de obras estabelecidas na cultura popular estadunidense, como Cruella (2021), Malévola (2014 e 2019), Coringa (2019) e Arlequina (2020). Ao propor uma reinterpretação de suas narrativas anteriormente contadas, tais trabalhos dispõe-se a tratar sobre um outro lado da moeda, outras faces da história, mais frescas, afinadas com os discursos sociais da atualidade e procurando humanizar figuras habitualmente vis. É como se os protagonistas das obras originais não mais cativassem tanto o público, junto à necessidade de explorar outros núcleos da novela, tornando coadjuvantes figuras centrais de novos trabalhos. Nesse aromatizante odor de renovação, outro futuro lançamento é Kraven, O Caçador (2023), promessa para os cinemas desse ano.

 

Como de praxe, Wandinha é boca de confusão: após ser recusada em inúmeras instituições de ensino, expulsa de outras e ter cometido uma série de ações ilícitas, a única opção que sua família encontra é matriculá-la em “Never More” (na tradução para o português, Nunca Mais), escola para os desajustados sociais, em suma seres fantásticos dotados de peculiaridades não humanas, como sereias, górgonas, e outros gêneros de “monstruosidades”. Um clima Monster High paira no ar, com seus guetos de excluídos, demonstrações de dotes sobrenaturais, na herança de um bom colegial norte-americano. O internato, reprodutor dos idênticos códigos de sociabilidade sectarizantes, vira cenário ideal para a criação de um novo frisson adolescente.

 

Assim que chega, Wandinha, começa a dividir quarto com a “lobisomem” Enid (Emma Myers), que ainda não passou pelo período de transformação licantrópica, logo não possui nada além de pequenas garras na ponta dos dedos. Enid é uma colorida e entusiasmada garota, dona de um blog de fofocas sobre a escola. Sabe um pouco de tudo, de todos e é o correio das conversinhas de corredor. Gosta de k-pop, crochê em cores vibrantes e mantém suas unhas em tons diferentes. Expressa o oposto da roomate, e em um antagônico jogo de peteca, tal relação é tensionada diversas vezes durante a série.

 

Com a aparência juvenil de seus dezesseis anos, a protagonista, em comparação aos outros colegas, apresenta um comportamento deveras precoce para sua idade. É uma investigadora nata, persegue mistérios como uma criminologista obstinada. Há mistérios por Never More, e ela irá esmiuçá-los, independente se dela duvidarem. Embora divida quarto com uma “loba”, a “loba solitária” quem performa é ela, em seus percursos solo, não priorizando a companhia de outras pessoas.

 

A apreciação pela morbidez se manifesta em frases pessimistas, explicitando o desprezo pelo seu entorno. Essa figura infantil, praguejando maldades e insensibilidade, não deixa de cativar por um lado cômico, por mais pesado que seja. Chega a lembrar Funérea, animação da MTV. Em um controverso mood “queria estar morta” - pois de fato não está, está viva reclamando. Por certo viés existencialista de sua personalidade, temos acesso ao seu gosto musical, a suas afinidades literárias e a seu espectro sentimental.

 

Não muito simpatizante de socializações afetivas, imerge tanto dentro de suas narrativas e somente, que muitas vezes desconsidera a individualidade dos que lhe auxiliam. Esse impulso genuinamente egoísta pode ser de antemão imaginado pela bajulação e admiração que seus pais lhe imprimiram. Mas há aí uma falta de responsabilidade (afetiva?) com aqueles que a cercam e de alguma maneira escolheram ajudá-la. Colocando a vida de outros em risco, seus fins não são capazes de justificar totalmente os meios que usa para alcançar determinadas soluções. Mas baile que segue, apesar de alguns puxões de orelha que parecem entrar por um ouvido e sair pelo outro, rola uma “passação” de pano mais geral.

 

Entre os diversos plot twists existentes na trama, Goodie (também interpretada por Jenna) é um desses: trata-se de uma antepassada, espírito de um corpo desencarnado que se manifesta nas visões de Wandinha. Aparecendo em severos momentos da temporada por meio de flashbacks espirituais, é uma médium que viveu no século XVIII pelas localidades de Never More - uma coisinha assim bem Bruxas de Salém. Através dela Wednesdays consegue acessar épocas remotas, travar diálogos com sua ancestralidade, descobrir segredos familiares e potencializar ainda mais suas visões.

 

Como a maior parte dos projetos que Tim Burton participa, há certa problemática na abordagem dos personagens negros. Na série, dentro do ambiente escolar, poucos são os alunos racializados. E quando inseridos, ou cumprem função antagônica à protagonista (como Bianca Barclay), ou exercem participação secundária digna de riso (como Moosa Mostafa, o garoto das abelhas).

 

A sereia Bianca (Joy Sunday), embora seja uma personagem babadeira, cheia de habilidades e perspicácias, toda hora compete com a protagonista, num enfático tira-teima para provar quem é a melhor. Lutam na esgrima, nas corridas de barco e até disputam a atenção de um mesmo bofe, o sensível pintor Xavier (Percy Hynes White). Mas de nada adianta a richa se a série leva o nome de Wednesdays, sendo a peça central da trama, nunca será definitivamente deitada por outrém, caso contrário o programa acaba. Vislumbramos alguma relativização dessa “inimizade” em poucos momentos.

 

Os outros personagens pretos fora do núcleo não humano são o prefeito Noble Walker (Tommie Earl Jenkins) e seu filho Lucas Walker (Iman Marson): adversários natos de Never More, defendem o interesse dos ditos “cidadãos de bem”. O filho, tomando partida dos julgamentos morais da cidade, também entra na onda de boicote aos outsiders e avacalha de vez o baile de gala da turminha de Never More. Somado a outras atitudes da dupla, embasada pelo forte preconceito da população provinciana de Jericho, está dado o recheio de tirania necessário para o hall de inimigos da protagonista. Com tantos investimentos e fundos disponíveis para a série, chega a ser preguiçosa a falta de cuidado com tais personagens.

 

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Ao longo dos oito episódios de aproximadamente cinquenta minutos, alguns casos não solucionados primordiais se desenvolvem. Nos espantamos com aquela geniosa garota cavando os próprios enigmas, quatro ou cinco histórias mal resolvidas são desvendadas por ela, mesmo que a duvidosas custas.

 

A trilha sonora tem muito da música clássica, instrumentos como órgãos, violoncelos, tocam Vivaldi e Satie, e as sonoridades pop se incorporam por intermédio desses códigos musicais. Na playlist de Wandinha, escutamos de “La Llorona” por Chavela Vargas à “Paint in Black” dos Rolling Stones. Em cores frias e iluminação soturna, apoiada na estética do terror, na predileção pelo gótico, seja a arquitetura de Never More, a paisagem enevoada do entorno, ou pela morbidez do romântico, envereda pelo suspense, mas traz um final feliz.

 

De inegável hype (vemos réplicas, conteúdos aos montes nas redes sociais parodiando Wednesdays), o trabalho chega apreensivo para criar uma sensação. Usa do fantástico, de elementos culturais que atravessam gerações, e um farto molho de ironia. Busca humor mesmo no oposto do riso, apoiando-se na teia do suspense. Paralelamente, há toda uma atmosfera juvenil e um tanto arrastada nos capítulos que se seguem. Amada ou odiada, a segunda temporada dessa “maldita queridinha” já está garantida na Netflix.

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