Lucas Vian e Silva
Mestre em Comunicação e Linguagens pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná - UTP, linha de pesquisa: Estudos de Cinema e Audiovisual (2018). MBA em Gestão e Produção de Rádio e TV pela Universidade Tuiuti do Paraná - UTP (2015). Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR (2013). Membro do grupo de pesquisa TELAS: cinema, televisão, streaming e experiência estética (PPGCOM-UTP). Atua como ministrante de aulas, podcasts, palestras e cursos de extensão. Criador e Produtor do blog Futuro do Basquete, fundado em 2016. Como pesquisador dedica-se a área da comunicação, do cinema e audiovisual, especificamente em ludologia, pós-modernismo e política.
FAR CRY 6 E A CUBA DE AYER
O jogo Far Cry 6 (2021) é o décimo quarto da série, produzido pela produtora canadense Ubisoft. A saga Far Cry trata-se de um jogo de tiro em primeira pessoa. Sua história, na maioria das vezes, coloca o protagonista como um forasteiro em uma terra desconhecida. Em alguns cenários as ambientações apresentadas no jogo remetem à eventos que aconteceram na vida real. Algo que não é novidade para a Ubisoft, que possui parte de sua fama graças a saga Assassin’s Creed, que também explora ambientações históricas com a ficção digital.
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Enquanto os primeiros jogos da saga Far Cry se passavam em uma ilha fictícia sem nome, com uma ambientação que remetia ao livro “A Ilha do Dr. Moreau” (1896) do autor britânico H.G. Wells; um dos mais recentes em compesação Far Cry 5 (2018), por exemplo, possui diversos elementos da Guerra Civil Nepalesa (1996-2006).
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O jogo abordado nesse texto, Far Cry 6, se passa na fictícia ilha caribenha de Yara. O local mistura elementos da ficção com a realidade. A Ubisoft se inspirou em diversos elementos da história cubana para a criação do jogo. Famoso por seus antagonistas, o grade vilão desta 14ª edição é Antón Castillo (cuja voz e aparência é feita pelo ator Giancarlo Esposito), que governa a ilha com mão de ferro.
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As semelhanças com a fatos históricos se apresentam quando analisamos o background da narrativa. O pai de Antón, Gabriel Castillo, governava Yara antes de ser deposto por uma revolução popular comandada por um grupo conhecido como Leyendas de ’67. Assim como já é tradição da Ubisoft, essa história é emprestada da Revolução Cubana (1953-1959) quando o Movimiento 26 de Julio liderou uma revolução popular contra Fulgencio Batista. Em Cuba, a revolução resultou no atual governo. No início, Fidel Castro foi chefe do governo do país ao lado de Osvaldo Dorticós, após a morte do segundo, seguiu como único chefe do governo nacional de 1976 até 2008; consequentemente seguido de seu irmão Raúl Castro, que governou de 2008 a 2018, e atualmente de Miguel Díaz-Canel, presidente desde 2018. Já em Yara, o presidente Santos Espinoza (que é baseado em Dorticós) assume a presidência após a queda de Gabriel Castillo, e acaba sofrendo um golpe de Antón Castillo.
Apesar das semelhanças e diferenças, existe um conceito em especial que paira sob o jogo, o conceito da Cuba de Ayer (em tradução livre: Cuba de ontem). Esse conceito foi cunhado pelo Prof. Miguel de la Torre e tem sua repercução moderna estudada pelo Prof. Alan Aja, da City University of New York. Trata-se de uma visão idealizada de como Cuba era antes da revolução. Uma visão distorcida que coloca a ditadura Fulgencio Batista como um período próspero do país, e ignora os problemas que a ilha possuia na época, como ser um ponto exclusivamente para turismo estadunidense, basicamente recheada de bordéis e cassinos (isso sem entrar na pauta racial que era praticamente inexistente outrora).
Entre tiros e explosões de Far Cry 6, esse conceito fica claro quando se entra em veículos durante o jogo. Veículos civis estão com seus rádios tocando reggaeton, gênero musical mais recente, em comparação ao rádio de veículos militares ligados à Castillo, onde temos a salsa.
Um conceito utilizado pelo personagem Antón Castillo é a retrotopia. Esse conceito promulgado pelo teórico polonês Zygmunt Bauman implica em utilizar conceitos antigos, senão obsoletos, e aplicá-los à nosso tempo. Como por exemplo, a maneira que Castillo governa Yara. Em diversos lugares do mapa temos outdoors realçando como Castillo é um yarano comum, como ele é um excelente líder em imagens cafonas de situações de dia a dia com o ditador sanguinário (em um dos cartazes ele está ao lado de um mecânico observando o motor de um carro).
Esse conceito de retrotopia também é possível se aplicar à um ambiente mais próximo de nossa realidade, o próprio Brasil. Criar essa visão idealizada do período da Ditadura Militar Brasileira (1964-1985) é algo que foi visto durante o governo de Jair Bolsonaro, e que vemos a criação desse mito em cima das ditaduras provenientes da Operação Condor em líderes de extrema-direita nas Américas. O chileno José Antonio Kast e o uruguaio Guido Manini Ríos foram dois nomes que utilizaram das sanguinárias ditaduras de seus países como uma nostalgia por um passado que não existiu durante suas campanhas presidenciais. Esse discurso de buscar no passado soluções para problemas atuais também está presente em discursos neo-fascistas na europa, como nas figuras do português André Ventura, salazarista, e do espanhol Santiago Abascal, franquista.
Em conclusão, o jogo erra em vários elementos da sociedade cubana. Como por exemplo o conceito do Resolver. Na cultura da ilha, seria uma maneira de adaptar a vida ao embargo criminoso sofrido pelo Estados Unidos por meio do nosso conhecido conceito: gambiarra. Não obstante, o jogo tem uma abordagem divertida e estética de armas improvisadas ao abordar a Cuba de Ayer.
“Medida Provisória” e o Back-to-Africa movement
O filme “Medida Provisória” (2020), dirigido por Lázaro Ramos e com o ator britânico Alfred Enoch em seu elenco, é baseado na peça “Namíbia Não”, de Aldri Anunciação. A história aborda a remoção dos negros em um Brasil distópico. O filme conta com diversos elementos que retratam a atual realidade do Brasil, como, por exemplo, o graffiti com a imagem do mestre de capoeira Moa do Katendê, morto em 2018 após uma discussão política com um fascista.
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Porém, de todos os elementos que conversam com a realidade no filme, uma das mais assustadoras provavelmente é saber que a decisão de mandar os negros de volta a África já foi uma realidade, ainda que não tenha sido no Brasil.
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O “Back-to-Africa movement” (em tradução livre: movimento de Volta-a-Africa) foi um pensamento criado nos Estados Unidos cerca de 30 anos antes da Guerra Civil Estadunidense (1861-1865). Um dos pioneiros deste pensamento foi a American Colonization Society, fundada pelo Reverendo Robert Finley, que tinha como objetivo conciliar entre o lado escravagista e abolicionista. Conceito absurdo que, obviamente, iria punir àqueles escravizados.
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A principal pauta do movimento era enviar os escravos libertos de volta à África, com o objetivo de “resolver” o problema da escravidão, mantendo o conceito racista de não permitir com que os negros integrassem a sociedade estadunidense.
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O empresário Paul Cuffe, filho de um pai negro e uma mãe nativa-americana, foi o principal financiador de uma das colônias estadunidenses na África, composta basicamente por ex-escravos dos Estados Unidos. Foram duas regiões no Continente Mãe que tiveram suas histórias moldadas pelo “Back-to-Africa movement”: Libéria e Serra Leoa. A primeira, cuja capital se chama Monrovia em decorrência do apoio do então presidente estadunidense James Monroe a American Colonization Society, teve como seu primeiro presidente após a independência o mercante Joseph Jenkins Roberts, nascido nos EUA. Já Serra Leoa era um protetorado britânico e foi onde Cuffe investiu seu dinheiro para mandar negros estadunidenses à África.
A história de “Medida Provisória” e “Namíbia Não” parece absurda, mas tem seu pé na realidade. E quando se aborda a realidade, não é possível ignorar o verdadeiro culpado por essas atrocidades racistas, o capitalismo.
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Em discurso realizado em novembro de 1969, o presidente do Partido dos Panteras Negras do estado de Illinois, Fred Hampton, abordou com precisão a relação entre o racismo e o capitalismo na sociedade estadunidense: “Quando trouxeram escravos para cá, era para fazer dinheiro. Portanto a primeira ideia que veio era fazer dinheiro, então eles trouxeram os escravos para cá para fazer esse dinheiro. Isso significa que o racismo veio, através de fatos históricos, vindo do capitalismo. Teve de ser o capitalismo primeiro, e o racismo como um subproduto disso”.